12 de set. de 2003

O começo

Não sei por onde começar este diário. Nunca fui muito de escrever. Um poema aqui outro acolá, umas letras de música, anotações dispersas. Tem a ver com minha idade, acho.
Vinicius morreu aos 67 anos, em 1980. Quando o Tom morreu, também aos 67 anos, em 1994, botei na cabeça que tinha apenas mais cinco anos de vida. Mas 1999 chegou, completei meus 67 anos, depois cheguei aos 68 e agora estou com 71, e me sinto muito bem. Mesmo assim não sou idiota de pensar que ainda tenho muito tempo pela frente. Resolvi escrever, portanto. Escrever um diário, que é mais fácil e serve como alimento para as lembranças. Comecemos pois.
Hoje foi um dia comum. Aos leitores peço que tenham em mente que quando digo "hoje" refiro-me ao meu dia, que começa e termina quando eu quero, e não ao período convencional que vai de meia-noite a meia-noite. Hoje, por exemplo, o meu dia começou às dez e meia da noite, quando acordei e tomei o copo de chá de gengibre que deixo esfriando na cabeceira da cama todos os dias antes de dormir. Então saí da cama, botei a gravata, peguei o violão e entrei no banheiro. Fiquei até as quatro horas tocando os mesmos dois acordes de "Desafinado". Pouca gente sabe, mas desde 1959 eu tento consertar a harmonia dessa música sem conseguir grande coisa. Tudo bem, tudo bem. É só um trabalho.
Saí do banheiro e comecei a procurar Doralice, a maior e mais velha das minhas iguanas. Ela costuma atender à minha voz quando começo a cantar "Doralice/eu bem que lhe disse/amar é tolice/é bobagem, é ilusão.", mas às vezes torna-se arredia e começa essa brincadeira de esconde-esconde. Encontrada Doralice, levei-a para o terrário grande e botei comida para ela e as outras. Então peguei umas bananas na fruteira e levei para o armário onde Johnny Alf, o morcego, passa os dias dormindo. Ele guinchou em protesto frente à súbita claridade quando abri a porta, então apenas deixei as bananas num cabide e fui para a varanda.
Já eram oito da manhã. Lá embaixo, pessoas de várias idades faziam aquecimento para começarem sua corrida pela praia. Fiquei com pena delas, tão ciosas de sua saúde, aparentemente ignorando a inexorabilidade do tempo e da morte. Fiquei com tanta pena, na verdade, que dessa vez joguei só duas bombinhas. O zelador do prédio está maluco com isso há anos, tentando descobrir quem é o moleque que azucrina os passantes com seus explosivos. É claro que nunca passará pela cabeça dele que o moleque é o ermitão da cobertura.
Saí da varanda e me dirigi ao telefone. A fome começava a apertar, hora de pedir meu almoço no restaurante de sempre. Quando atenderam, apenas fiz a série de batidas de sempre no bocal do aparelho: não posso desgastar minha voz com essas trivialidades. Meia hora depois, ouvi a campainha. Antes de abrir a porta, certifiquei-me pelo olho mágico que o rapaz de entregas já havia saído. É um curioso irremediável, há meses tenta descobrir quem sou eu. Acho que ele tem um pouco de medo misturado à sua curiosidade. De uma forma ou de outra, me agrada esse jogo de mistério.
Almocei em frente à TV sem som e depois liguei para Gal. Ela já foi uma das minhas companhias preferidas: compreendia como ninguém o quanto o som perfeito é sagrado, e tinha aquela voz maviosa. De uns anos para cá, entretanto, sua voz foi se decompondo assim como seu cérebro. Anda meio maluca, a Gracinha. Chegou a mostrar os peitos num show, uma vergonha. Eu ainda converso com ela, em nome da velha amizade. Mas são conversas breves. Dessa vez mesmo fiquei apenas duas horas e meia ao telefone com ela. Meia hora depois, enquanto eu regava as samambaias, Caetano ligou.
? Recebeu a música, João?
[um toque - sinal para sim]
? Gostou?
[um toque]
? Que bom! Vai gravar?
[três toques - "talvez"]
? Hum... Posso passar aí mais tarde pra conversarmos sobre isso?
[dois toques, pausa, quatro toques - "Não. Tchau."]
Caetano me irrita. Mas não tanto quanto Gil. Gil sequer tem meu telefone.

3 comentários:

Nícolas Brandão Silva disse...

mesmos dois acordes de Desafinado?

Desde quando desafinado é samba da benção?

Desafinado tem uma porrada de acordes....ora joão? Estais bem da cabeça?

ps: boníssima idéia giberto!

Nícolas Brandão Silva disse...

nao fique bravo ora...apenas rolou uma ambiguidade....natural acontece...

mais uma vez, bonissima ideia...eu gostei muito do blog.

nao quero inimizade nao. Muito pelo contrario.

parabens pela ideia.

Anônimo disse...

Só de imaginar que poderia mesmo ser o João que está escrevendo fica uma sensação boa. Boa idéia, seja lá quem for o dono desse blog.